domingo, 22 de abril de 2012

Reflexões

  Rita Rodrigues

Neste momento “quente” de luta sindical para o SPM-Madeira remexi nas minhas “preocupações”… e a questão do poder sempre me acompanhou, ora mais premente, ora mais ténue … e tem sido objecto de reflexão no meu processo criativo, quer na produção de textos, quer na produção de objectos.
Partilho com todos os professores umas palavras escritas em 2007 (em seu tempo, e em seu contexto!).
Entendo que a ilha é um todo dentro das partes e é uma parte dentro de um todo, por isso, aqui ou em qualquer parte geográfica do nosso país, os professores devem colocar as premissas nas questões fundamentais da EDUCAÇÃO e na realidade profissional da CARREIRA DOCENTE, exigindo e perspectivando a excelência …
 A VACA SAGRADA


Podium de 4 degraus, Rita Rodrigues, 2007

Atenção! Atenção: este podium deverá ser construído com quatro degraus. Os operários não compreendiam. Coçavam a cabeça, reviravam os olhos, cuspiam para o chão, murmuravam palavras proibidas, mas lá iam construindo o podium com quatro degraus. Alguns pensaram (com medo do pecado, mas como era em pensamento tinham a certeza absoluta, dentro da relatividade dos seus dogmas, que ninguém bufava): por mim até pode ter dez degraus, até pode ser um zigurate (que chatice ter um subalterno intelectual!). Os deuses tombam!
Os chefes (todos os que conseguem abrir a boca botam faladura e têm sempre ar de chefes, embora os galões estejam desbotados e as ordens são, sempre, de somenos importância) procuravam nos flyers recentes, nos catálogos antigos, nos folhetos coloridos, nos regulamentos, nas leis (dos deuses e dos homens) e nada encontravam sobre o bendito podium de quatro degraus! As novidades não chegam à nossa casa!
Os administradores (homens actualizados) navegavam na net e perdiam-se em sites da especialidade (com estas ideias de modernices poderia ser uma coisa recente). Afinal estamos muito desactualizados!
Os engenheiros folheavam as velhas sebentas da faculdade (não fosse um modelo antigo). Os arquitectos dialogavam com o papel e riscavam, riscavam (sempre na esperança de projectarem um modelo original a ser premiado num país qualquer). Os historiadores escavavam os maços de papel cheios de formiga-branca (não fosse uma moda de outros reinados). Os juristas releram todas as leis universais (na esperança de nunca encontrarem). E nada sobre o podium de quadro degraus!
Construíu-se um podium remotamente parecido com o podium dos jogos olímpicos, dos mundiais, dos regionais, dos dedos invisíveis, dos corpos amortalhados, das seduções esquecidas, das palavras não proferidas!
Publicitou-se o podium de quatro degraus nos canais populares, à hora nobre, sob aplausos e risotas de bocas desdentadas. Um pouco desengonçado, um pouco atabalhoado, um pouco desequilibrado, construído à pressa, com medo das ideias brilhantes de outros entes que desejassem inventar novos podiuns com mais degraus. Ali estava o podium!
As histórias, as religiões, as leis, as regras, as vontades, os conhecimentos, são factores de segundo plano. A Vaca Sagrada, a mãe das mães, a mãe dos filhos, a mãe das leis, a mãe da natureza, a mãe dos podiuns de qualquer tipologia, dá ordens!
Não interessa se tem a Ribeira da Vaca 1093 metros de altura (os pobres sonham sempre tocar no céu!). Não interessa se a casa da vaca é apenas o estábulo (eliminando os odores tem um calor agradável!). Não interessa se o Vouga tem a origem do seu nome na vaca ou vacua (isso é fora deste circuito geográfico e os indígenas dessa zona nem falam francês). Não interessa se a vaca errada não é regular em dar crias (há sempre umas mãos disponíveis para massajar as mentes e confortar os espíritos!). Não interessa a história das vacas magras e das vacas gordas (isso são histórias sem peso psicológico!). Não interessa se o povo pensa que uma vaca é uma mulher gorda e disforme, desavergonhada ou puta (coitado, o povo não pensa!). Não interessa se um dia o faraó teve um sonho com sete vacas gordas e sete vacas magras a sairem do rio (que se saiba os faraós não falavam línguas estrangeiras!). Não interessa se a interpretação de Josué sobre o sonho do faraó o levou a falar de abundância e de miséria (este não é assunto que mereça subsídio de um fundo qualquer para um curso com um título pomposo!). Não interessa se na Bíblia a vaca é sacrifício e expiação (esses são sofrimentos para os outros e não é tema de conferência!). Não interessa se a carne e o leite de vaca são alimentos permitidos pela lei de Moisés (há sempre outras leis!). Não interessa se a deusa Hattor tem uma cabeça de vaca (cada um pode ter a cabeça que quiser desde que não cobice o podium de quatro degraus!). Não interessa se há amuletos em formas de vaca (esses são vendidos em feiras de rua ou na foire aux puces, há sempre outros comprados em boutiques com etiqueta de marca!). Não interessa se as vacas estão (ou vão ficar) loucas (podem ser abatidas mesmo gozando de boa saúde!). Não interessa se há povos a morrerem de fome enquanto as vacas são enfeitadas com grinaldas de flores e chifres pintados (há tantos homens que imitam as vacas!). Não interessa se o estrume de vaca pode ser transformado em energia (essa coisa de energia de esterco é para os ecologistas!). Não interessa se não há podium de quatro degraus!
As Vacas querem imitar a doce ovelha escocesa Dolly. A multiplicação não ficou restrita à indústria da panificação, estendeu-se aos impostos (teimosamente pagos por uns), aos concursos (sempre transparentes para todos), às revistas cor-de-rosa (ora negras, ora douradas, lidas nos WCs), aos debates (concordantes, 50% SIM, 50% NÃO). E lá vão as dollies a correrem atrás da sua própria forma: são as francesas Maine-Anjou da região do Loire que servem para abate; as Blonde d´Aquitaine de Bordéus, de pele dourada, mas bestas de transporte; as Charoles apelidadas de embaixadoras de França e únicas a fazerem concorrência às vacas inglesas! E à vaca portuguesa resta-lhe um prado seco (a água fica em reserva, por segurança política, na fronteira vizinha) espaço legitimado à introspecção! As vacas (que querem ser sagradas) organizam-se em debates, mesas redondas, conferências, programas de rádio, televisão e pedem referendos. Mal dos homens: tantas vacas à procura de um lugar no podium!
Se há alguém que merece honrarias de um podium (de quatro ou outro número qualquer de degraus) é George Orwel pelo seu Triunfo dos Porcos, porque “todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais do que outros”! Abaixo as revoluções das igualdades (e das quotas!).
Exposição PODERES E MARTÍRIOS, Galeria Casa das Mudas – Calheta
Rita Rodrigues, 2007

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