quarta-feira, 4 de abril de 2012

Reflexões

Diário de Notícias  Segunda, 2 de Abril de 2012

Cidadania

É a educação para e na cidadania que ensina o necessário respeito (...) pelos valores da liberdade

Júlia Caré
Ser cidadão é ter direito à vida, à habitação, à educação, ao trabalho, à dignidade, a ser respeitado nas suas diferenças, ajudado nas suas fragilidades, integrado no seu grupo social. A cidadania define-se como o vínculo jurídico-político, a relação entre um indivíduo e um Estado, vínculo que albergue equitativa e reciprocamente um conjunto de direitos e deveres. A cidadania não se impõe; constrói-se pela educação e socialização, resulta da formação de um sentido de pertença social e cultural, a inclusão de um "eu" num "nós", que se inicia no colo dos pais, se treina na escola e na comunidade social, se aprofunda pela vida fora, num processo contínuo de socialização e reconfiguração identitária. É descobrir-se como ser igual e diferente face ao outro, respeitá-lo, sentir-lhe os problemas, ser solidário. E confrontá-lo se preciso for. É privilegiar o valor da emancipação individual, no caminho para a utopia da liberdade. Mais do que um amontoado de considerações legais e jurídicas, a cidadania radica na dignidade do ser humano independentemente da sua condição social, económica ou política.
A cidadania aprende-se, vive-se, ensina-se. Pelo exemplo e pela prática mas também pela centralidade que deve ter em todas as dimensões da vida de um Estado democrático: na Educação, na Saúde, na Segurança Social, na Justiça, na Economia. Para além dos princípios constitucionais, inscreve-se nas inúmeras recomendações internacionais sobre a indissociável ligação entre Direitos Humanos, Cidadania e Democracia, a trilogia virtuosa da construção da Paz. E num tempo de contradições, de perda de regalias sociais, de retrocesso em conquistas civilizacionais, de inevitáveis conflitos entre direitos e deveres individuais, pessoais e colectivos e de inquietantes erupções de intolerância, xenofobia, discriminação e racismo, latentes numa sociedade carente de aprendizagem do "Outro", educar para a cidadania, tem que continuar a ser uma prioridade de qualquer sistema educativo, quer seja com disciplinas formais, quer como fio condutor transdisciplinar, em abordagens e acções multidisciplinares que associem a educação cívica e política com o ensino da história, da filosofia, das religiões, das línguas, das ciências sociais e todas as disciplinas que comportem aspectos éticos, políticos, sociais, culturais ou filosóficos, como referem repetidas recomendações e resoluções europeias.
Apesar de na opinião do Ministro Crato a aprendizagem da cidadania na escola perder importância face ao imperativo da aquisição "da matéria a saber para passar o ano", na lógica acumulativa dos conteúdos formais - a "educação bancária" de Paulo Freire - cidadania é, na escola e na vida, aprender a ser tolerante, solidário, generoso, é entender o conflito como espaço de aprendizagem, é argumentar em defesa de pontos de vista próprios, é ouvir, compreender e interpretar os argumentos dos outros, é reconhecer e aceitar a diversidade, é desenvolver espírito crítico em relação à informação, a modelos de pensamento, a conceitos filosóficos, religiosos, sociais, políticos e culturais… É a educação para e na cidadania que ensina o necessário respeito pela autoridade, pelos valores da liberdade, do pluralismo democrático, dos direitos humanos e do Estado de Direito, que promove a participação de todos os cidadãos na vida política, cívica e cultural, essencial a uma sociedade livre, tolerante e justa. Não merece por isso o lugar periférico que lhe concede o Ministro Crato.
Isto e muito mais veio Nita Freire e outros seguidores do pensamento de Paulo Freire dizer aos professores que participaram no I Encontro Internacional Paulo Freire. Que os fundamentos da Educação implicam "mergulhar nas águas da ética, dos direitos humanos, da justiça, contra a minimização dos seres humanos", porque "só assim se pode mudar a sociedade e o mundo"; temos "o dever de denunciar o mundo malvado, degradado e feio" e há que "tirar o povo da condição de analfabetos do mundo", porque "a ética do mercado miserabiliza os povos,(…) é a antítese do Estado e dos direitos humanos"; que "a conscientização é o aprofundamento da tomada de consciência" e implica "a reflexão crítica, séria, rigorosa…"
Está a abrir brechas, a nossa cidadania. Cada vez mais desiguais. Esta é "a leitura do mundo": corta-se salários a muitos enquanto uns quantos acumulam remunerações principescas e atribuem-se dividendos de milhões; cerca de 300.000 desempregados estão sem acesso a qualquer forma de subsídio, muitos condenados ao desemprego definitivo; para outros, jovens altamente qualificados, dificilmente haverá emprego; a pobreza afecta um cada vez maior número de crianças… Em resposta, o Estado reduz os apoios sociais. E para nós madeirenses e porto-santenses este doloroso mês de Abril inicia uma etapa de retrocesso em termos de conquistas que pensávamos consolidadas pela autonomia e que por incúria perdemos, hipotecámos a políticas erradas. É ou não hora de discutir o conceito de cidadania?

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